O Natal que eu nunca conheci

Por: Michelle Rossi

Quando era criança, costumava ouvir a história do Natal com outros olhos e ler com outros ouvidos…
Antes, menina nova, eu pensava em Maria como uma mulher crescida, no mínimo casada com José, com a vida estabilizada e estabelecida, visitada por um anjo que a fez sentir a mulher mais especial da face da Terra porque levaria no ventre a criança bendita de Deus.

Hoje, crescida, mais velha que sou e agora também mãe de dois filhos, embora ainda menina, percebo que a Maria era tão ou mais menina quanto eu à época em que escutava essa história.
Maria é a adolescente solteira que engravida “antes do tempo” cuja história se repete nos almoços de família e se comenta com um certo tom de lamento e até vergonha.
Maria é a noiva prometida virgem em uma cultura que nem cita o nome da mulher, mas destaca a sua virgindade como seu valor principal e primordial, e só depois cita seu nome.
Maria é a noiva quase-rejeitada pelo noivo por carregar seu filho bastardo. Foi preciso um anjo lhe falar em sonho para convencê-lo da mística envolvida.
Maria é a mulher grávida, que exatamente por esta condição se sente frágil-forte, ora pequena e limitada, ora grande e agraciada. É aquela que, por estar grávida “antes da hora”, pelos padrões vigentes, possivelmente não teve o apoio familiar, visto ser uma condição no mínimo vergonhosa pra si e ultrajante pra família. É aquela que antecipa o casamento para não ficar “mal-falada”. É a que sente medo por não saber o que viria e por todos os temores inerentes à gestação em si, que são infinitos em quantidade e em intensidades.

Maria é a mulher comum empurrada pelo Rodo Cotidiano:
“Ela é linda mas não tem nome
É comum e é normal
Sou mais um no Brasil da Central
Na minhoca de metal”

Aquela pessoa comum,
Menina comum
Com uma vida comum,
Que corre pra viver
Que trabalha para sobreviver

Agraciada pela desGraça
De carregar no ventre a criança
Cuja revelação do pai
Era necessariamente,
Culturalmente,
Uma blasfêmia

Oprimida pelo Rodo Cotidiano,
Empurrada pela força da lei de um censo,
Empurrada pela lei carregada de falta de senso, de sentindo e de sensibilidade para as pessoas e suas questões

Com quem a gente se esbarra quase todo dia, no ramal de Gramacho:
“O espaço é curto quase um curral
Na mochila amassada uma vidinha abafada
Meu troco é pouco, é quase nada”

Ela é quase-nada
É quase-ninguém
É mais uma nesse ralo de gente
Cuja vida escorre
Oprimida
Espremida
Sofrida

Deixada na margem
Vivendo à margem

E onde mais nasceria essa criança,
Se não nesse espaço curto,
um exato curral?

Então, ali nesse pequeno espaço apertado
Do vagão desse trem-estábulo contemporâneo, ele nasceu:
O filho de Deus
Que de tão humano,
Escolheu se chamar:
O filho do Homem

Filho de uma menina-mulher
Comum e normal
Bendita por ser humana, boa aos olhos do criador
Bendita por ser Maria, simplesmente Maria
E por isso, escolhida pra levar em seu ventre a criança divinamente humana

Esse é o Natal que nunca conheci
Esse é o Natal que Mi chama pra celebrar uma pessoa comum
Que se encontraria no bar no fim do dia
Pra celebrar a vida comum do dia a dia

Uma pessoa que, por não ter nenhuma pretensão que vá além de ser ordinária,
Se tornou extraordinária

Então, antes de desejar um Feliz Natal, que tal, antes, refletir sobre qual Natal estamos falando?

Agora, sim, um Feliz Natal comum e ordinário a todos nós